A África dos meus sonhos
7 de julho de 2007
Postado por Unknown
A ÁFRICA DOS MEUS SONHOS
Não trouxe a África nem nas minhas bagagens! Nenhuma lembrancinha de aeroporto.
Pra que lembranças se não vou esquecer? Esculturas artesanais que desenham lindas mulheres negras vivendo o cotidiano de carregar lenhas eu já as tenho em casa faz tempo por iniciativa da minha esposa. Temos negras, japonesas, espanholitas, nordestinas, holandesas, indígenas... Souvenires de amor transcultural.
Entretanto, nessa primeira madrugada uma torrente de sonhos transpassou toda a noite em muitas memórias e ecos.
Sonhos. Sonhos muitos. Sons estranhos. Misturados. Faces várias de crianças tantas.
Trouxe a África comigo. Trouxe as ocultas personagens desse intercâmbio. Trouxe os rostinhos dos que ficaram no meio do caminho enquanto prosseguíamos. Sinceramente não sirvo para salvar ninguém por estatística. Ou dou um jeito logo em tudo, ou é melhor nem ter começado!
Nos meus sonhos, voltei a um vilarejo miserável em Oron, miserável cidade de Akwa Ibom State.
Devolvemos a essa vila um jovenzinho-bruxo todo quebrado pelo “vodu cristão”! Ele foi levado ao campo pelo irmão mais velho e quando ia ser imolado com um facão, foi arrancado da morte pelos homens do Chief Mr. Medekon, um dos maiores e mais respeitados anciãos da cidade. Conduzido ao orfanato, coube-nos investigar a causa de sua bruxificação e conversar com seus pais a respeito.
Mr. Medekon e sua equipe nos levaram ao vilarejo de origem. Lugar escuro, casebres de argila, aspecto tribal, sem ruas, mantido resfriado pelas palmeiras que se levantam ao redor. Parecia que todos já nos esperavam, inclusive a “vítima”, Emilia, a criança a quem o garoto, supostamente, impôs feitiços: uma menininha com cara de dor, com uns 5 aninhos, que carrega uma corcunda no meio das costas, entre as clavículas. É um edema que desvia sua coluna e aperta de dor seu pequeno peito. O chief, casado com uma enfermeira inglesa aposentada, suspeita de uma má-formação vertebral. Tomei em meu colo a criança. Ela não anda. Dói. As crianças a carregam. Sua mãe olhava esperançosa para mim. Mal sabia que eu mal sei. Toquei, apalpei, circunscrevi, pensei, consultei o arsenal mínimo de informações que a semiologia me deu durante esses anos que trabalho com neurologistas e minha sugestão diz respeito a uma tumoração que está esmagando o que tem ao redor de si. Sua origem só exames de ressonância poderão mostrar. Sua extensão aparecerá em tomografias com cortes precisos das imagens. Sua malignidade, só via-biópsia. Sua possibilidade de cura, só um neurocirurgião pode determinar; pois caso seja maligno, precisa saber se é invasivo – metido entre vértebras ou peritônio. E só será operável em função da nobreza da região no qual se está implantado. Se for ortopédico, há um longo caminho entre intervenções cirúrgicas e fisioterapias.
O chief, apoiado sobre sua bengala-cedro, nos chamou de canto e falou baixinho para que as dezenas de moradores que nos cercavam não ouvissem: “Amigos, se vocês conseguirem curar essa moça por vias médicas que não temos aqui, daí com um único exemplo, nós derrubaremos a crença mitológica de meu povo ignorante! Façam isso por nós, por favor!”
Ele usou de uma lógica ingênua e ao mesmo tempo racional: Ora, se a causa de muitas crianças serem expulsas dessa vila (bastando para tanto confessarem que são bruxos) está relacionada ao incurável desvio ortopédico da menininha, a cura dela cessaria o fluxo de acusações e suspeitas que viviam recaindo sobre as demais crianças moradoras do local.
Ali mesmo, sem mesas de escritório e mapas estratégicos, acreditamos que nada nos seria impossível, mesmo sendo tão desafiador! Lembrei-me que Jesus mandou curar os enfermos e expulsar os demônios dos vilarejos e cidades que entrássemos, anunciando-lhes que o Reino é chegado! – É foi o que decidimos fazer!
Pedi à Diana – nigeriana da Stepping Stones Nigeria que estava secretariando nossa visita a essa cidade – que anotasse os caminhos:
1) Procurar um médico clínico que providencie um hospital para exames de imagens e diagnóstico, e encontrar tal médico e tais exames nem que fosse seja lá aonde!
2) Com o diagnóstico médico, ter detalhes do tratamento a ser instituído e sua morbidade;
3) Se for tratável, levar a menina Emilia para a Europa através de um grande levante de fundos junto aos amigos do “Caminho” pelo mundo, não deixando de crer na possibilidade de que uma equipe de anjos a opere gratuitamente, considerando fatores de extrema pobreza e gravidade do caso;
A tempo, ainda estávamos lá dias depois, quando a Diana encontrou um hospital-escola no centro do país que disse que faria exames imaginológicos a um valor que só saberíamos na hora da consulta (Na Nigéria, não tem SUS!). Deixamos com ela o dinheiro para o transporte da família até o hospital e vamos aguardar os resultados.
Após o “exame clínico” da criança, Mr. Medekon nos pediu mais um favor: Falar com aquele que ele considera o maior culpado pela persistência dessa relação “doença de uma criança – caça de outra”.
Pedi para chamar o pastor, então.
O homem apareceu quase imediatamente entre nós, de motinha. Suava muito debaixo de um terno que não tinha nada a ver com aquele monte de crianças peladas e adultos maltrapilhos.
Sua igrejinha não era ali perto. Não. Era exatamente onde estávamos! O chão no qual nos sentamos era o cimentado da igreja e nós nem sabíamos. E a igreja era mais um casebre dentre tantos ali, uma Assembléia de Deus abandonada pela Assembléia de Deus como a maioria das Assembléias de Deus que assembleiam-se por lá.
O Leonardo foi direto ao assunto: “Pastor Moises, qual sua culpa nisso tudo? O que você ensina a essa comunidade? Por que, apesar de sua influência cristã aqui, eles ainda crêem na bruxificação de crianças?”
O pastor estava ali, exposto a todos, cercado de dezenas de famílias, e negando sobre o olhar raivoso do chief, que tenha participação em tudo. Para nós não havia surpresa na negativa pastoral... Foi assim a Missão inteira. Diante de nós, todo mundo nega tudo ao mesmo tempo em que pede clemência!
Aproveitamos seu estado de culpa, pedimos o auditório da sua igreja p´ra levar para uma reunião comunitária todos os que nos cercavam. Ele com toda prontidão abriu suas portas e num único assobio, convocou a vila.
As crianças e os adolescentes foram os primeiros a tomar assento. Estavam ansiosos e esforçando-se por captar o que se passa na cabeça dos adultos. Os pequeninos participaram da assembléia como quem buscar entender seus direitos à vida. Dava pena de vê-los tentando interpretar nossas brigas, discussões, apelos, réplicas, desafios, argumentações...
O Leo pregava em inglês contra a estigmatização infantil ensinando como Jesus tratava as crianças. O pastor Moises o traduzia para o dialeto local, especialmente preocupado em que os menores entendessem. Tal gesto foi me conquistando...
Ao final da preleção (aos berros, como tudo tem que ser ali), o Leonardo perguntou quem era contrário ao retorno do menininho quase imolado ao seio de sua casa. Pai e mãe aguardavam com expectativa a manifestação ou não de alguém.
Daí um adolescente de uns 16 anos se levanta, pede a palavra e discursa em inglês com incrível habilidade oratória: “Que garantia vocês nos dão de que o menino-bruxo não fará mais mal a minha vila?”
- “E de onde você tirou tamanha convicção de que ele é bruxo?” – disse o Leonardo.
- “Ele confessou que é bruxo! E quando um possesso confessa que o é, está confirmado seu estado!”
- “E eu sou o Barack Obama! Você acredita na minha confissão?”
- “Não! Eu não conheço você, mas sei que você não é o Barack Obama!”
- “E você conhece a criança ou o diabo dela para crer no que ela diz a seu próprio respeito após ter sido tão pressionada? Sobre pressão uma criança confessa o que dela pedirem!”
Começou então o de sempre: Eles brigam em Ibibio, o dialeto local. E uma gritaria ibibiana tomou o lugar, uns agredindo os outros, todos ao mesmo tempo, feito reunião de condomínio!
Eu só assistia enquanto fitava o belo jovem que a nós se opunha! Senti nele uma mistura de sinceridade com a presunção típica de quem pensa que nasceu sabendo coisas com as quais peitava o Leonardo e o Chief. Daí, pedi para falar. E o fiz, gritando e andando pelo pequeno recinto cinza:
“Meu amigo, quando os “white men” escreveram sobre o assunto, o teu pai nem tinha nascido. O idiota do homem branco que determinou que endemoninhados confessam que o são em nome de Jesus nem podia imaginar que vocês aplicariam isso à crianças! Agora, seus pastores pioram as besteiras que os meus escreveram e você acredita nisso como se fosse uma grande revelação??? Defenda suas crianças, rapaz! O próximo acusado pode ser seu irmão, pode ser VOCÊ! Pare de assistir filmes ridículos! Pare de acreditar em Helen Ukpabio! Creia em Jesus! E se você é o futuro mentor dessa vila, está na hora de aprender o Evangelho de Verdade, que deixaremos em suas mãos, para ensinar a todos!
Ele sabe que falávamos com autoridade, mas com amor e respeito por ele! Ao final, ele acatou com muita sinceridade nossas palavras e creu nelas de todo o coração! O Espírito me revelou que ele presidirá os “do Caminho” naquele lugar, como sábio guardião da fé.
Também sei que Deus vai curar Emilia, a pequena corcundinha. Orei debruçado sobre a cabeça dela como por um filho meu... Pedindo que o Pai a livre do Mal; e sobre o mal em suas costas passei minha própria saliva, misturada ao seu suor, untando-a assim com um bálsamo estranho até a mim mesmo... Preparando-a para a cura, seja pela medicina do Milagre ou pelo milagre da Medicina!
No dia seguinte, nossa equipe voltou até lá com material de ensino, com Evangelhos e literatura infantil. Encontraram resistência de outros homens, ausentes no dia anterior e motivados somente pelo espírito de inveja e pela embriaguez que os tomava. Eles recolheram alguns da reunião “no tapa”, mas a própria comunidade tratou de desprezá-los! Mães, pais e filhos queriam a Boa Nova do Evangelho e não os temeram. Os pais do menino pediram que assim que a “poeira abaixe” e as oposições se silenciem possamos tirar seu filho do orfanato e levá-lo de volta para casa. Por ora, estamos cuidando de seu bracinho quebrado.
No pequeno vilarejo em Oron, a Paz deu o ar de Sua Graça!
Ao nos despedir o chief me disse profundo: “Sei que nada faz sentido algum para vocês aqui, mas, por favor, não desistam do meu povo! Por favor!”
É esse clamor que me ecoou pela primeira madrugada pós-africana.
Essa não é África do meu Sonho, mas é a África dos meus sonhos.
Por favor, não desistam desse povo!
Por favor!
Marcelo
Santos/SP
A POEIRA NUNCA ABAIXA
Este artigo foi postado por Blog do Caminho em 7 de julho de 2007 às 11:51 e está arquivado em dossiê nigéria,nigéria. Siga quaisquer respostas a este artigo através do RSS 2.0 feed.