Quando estou aqui na Nigéria e fico dias sem escrever, fico até triste. Sei que por mais que eu me empenhe, não vou lembrar de todos os detalhes que compõem cada experiência que vivemos aqui...mas nestes últimos dias não foi fácil. Geralmente algo ataca minha saúde aqui, por mais que eu me empenhe em me proteger contra mosquitos e tenha cuidado com o que como. Depois deste meu último episódio, fui proibido pela Diana e pela senhora Ann Medekong de comer no “hotel” onde geralmente fico alojado. Chegaram a me levar ao hospital a noite, pois já estavam apostando que eu estava com Malária. Pediram-me que eu pagasse e fizesse dois testes, malária e tifóide, para termos certeza que eu não tinha nenhuma dessas doenças. Caso tivesse, seria melhor ser tratado aqui na Nigéria antes de deixar o país, pois nas palavras deles “ninguém sabe tratar a malária deles como eles sabem”. Graças a Deus os testes foram negativos, mas a febre me perturbou por dois dias e duas noites, e como não parei o trabalho para me recuperar, as baterias foram a zero. Não dava para parar, estávamos num momento muito importante, de firmar laços com a primeira dama do estado - que hoje através da Ong que ela fundou assumiu a responsabilidade das duzentas crianças que estavam no CRARN e que desde o começo fazem parte de nossas vidas. Ainda queremos ajudar essas crianças, pois temos um papel importante na vida delas e, em outro diário, lhes explicarei por que estou dizendo isso. Enfim, isso tudo pra dizer que no fim de noite, e literalmente no fim porque às vezes temos chegado da rua às 10 da noite, não sobrava muito de mim.

Domingo da semana passada fomos ao orfanato James 1:27 como havia antecipado a vocês. A proposta era fazer uma sessão de cinema para as crianças, com direito a pipoca e refrigerante.
Seqüestrei a cozinha do “hotel” e fui lá preparar a pipoca. Lá eu vi coisas que certamente explicam o meu mal estar dos últimos dias. Ignorei o que vi e segui com a pipoca. As cozinheiras ficaram me assistindo trabalhar super surpresas de ver aquela “mágica” na panela. Elas riam muito fazendo um monte de perguntas. Em seis paneladas estourei mais de um quilo de milho e enchemos potes de plástico para as mais de 50 crianças que estariam lá. Seguimos para o orfanato.
No caminho tomamos um baita susto. Eu ia no banco de trás com duas de nossas crianças (Samuel e Bassey) e com um rapaz chamado Jehu. Estávamos com a cabeça baixa ensinando o Jehu a usar minha câmera. Na frente estavam o Emmanuel, nosso motorista de sempre, e a Uduak, que também trabalha conosco. De repente os dois gritaram juntos. Quando eu levantei a cabeça, tudo que vi foi o vulto de uma moto que pareceu ter saído do meio do mato e atravessado a pista na nossa frente, e que graças a Deus conseguiu não ser atropelada pelo nosso carro. O interessante é que não vi nem um sinal de desaceleração do carro que seguiu na velocidade que estava, uns 70km/h. Só ouvi muito murmúrio de todos dentro do carro, em Ibibio (dialeto local), certamente xingando até a quinta geração do louco da moto.



Chegamos ao orfanato. O Bishop Evans, dono do lugar, já tinha colocado as crianças todas sentadas e quietas e a mais de uma hora esperando por nós dentro daquele pequeno galpão com paredes sem pintura que lhes serve de templo. De longe avistei a pequena Victória que já estava me assistindo com os olhinhos brilhando e um sorrisinho bem tímido.
O Bishop havia me dito, e mostrado inclusive, um super projetor que ele tinha. Havíamos combinado que usaríamos aquele já que o meu não estava funcionando direito. Olhei ao redor e não vi o projetor. Então perguntei ao Evans onde estava. Ele disse “está lá dentro” e ficou me olhando. Eu perguntei “nós não combinamos que iríamos usar o seu?” e ele confirmou “sim” e continuou me olhando... Às vezes não sei o que pensar, tem gente aqui que é esperto demais pra várias coisas, principalmente quando se trata de dinheiro, mas pra outras coisas são muito devagar.
Finalmente ele foi buscar o projetor pra nós e comecei a instalá-lo. Durante a instalação percebi que faltava o cabo VGA do projetor. O Evans não sabia o que havia acontecido com o cabo e classicamente começou a xingar a esposa. Rsrsrs
Liguei para um amigo no centro da cidade, perguntei se ele conseguia trazer um cabo destes para nós com urgência e ele me pediu uns 30 minutos. Não tínhamos outra saída e já passava das cinco da tarde. Eu percebia a expectativa das crianças crescendo e fui ficando com receio de desapontá-las. Segui com a instalação do resto enquanto aguardava o cabo. Quis ligar as caixas de som para testar e não tinha energia. Perguntei ao Evans “acabou a energia agora?” e ele disse “não, já faz muito tempo”, “e o seu gerador, dá pra ligar então?” e ele abrindo os braços como quem não sabe o que fazer me disse “acho que não, acho que não tem combustível”. Entreguei o dinheiro para o filho dele ir buscar o combustível para o gerador.

Meia hora mais tarde...
O cabo chegou, o combustível chegou...e trouxeram um gerador pequeno para perto do salão e ligaram ele na rede. Colocaram quase todo o combustível dentro e começaram a puxar a cordinha para ligá-lo...uma, duas, três, vinte e seis vezes...entrei na brincadeira...nada. O Emmanuel começou a desmontar o gerador, limpar a vela, tentar desafogar aquela coisa...nada. Eram mais de seis da tarde. Perguntei ao Evans “vocês não usam este gerador todos os dias?” e ele “esse tem muito tempo que não uso”. “E onde está o que vocês usam?!”. “Lá atrás, mas pedi para pegar este porque o outro é muito grande, pesado”. Parei de pedir as coisas e fui lá com o filho dele buscar o gerador. De fato era grande, do tamanho de um carrinho de mão destes de construção e assim como o carrinho, também tinha rodas! Em menos de um minuto estávamos com o gerador que funcionava no local, mais dois minutos com ele ligado e o Evans olhando para mim com aquela cara de “sou um inocente sem recursos precisando de ajuda para melhorar meu orfanato”.
A noite caiu e o filme finalmente ia começar. Vi que as crianças estavam muito longe da tela e das caixas e pedi que se achegassem. Sem querer dei a elas o direito de serem crianças novamente. Foi uma loucura, no escuro elas naquela gritaria correndo com suas cadeiras. Quando olhei, a pequena Victória estava inerte, sentadinha ainda no mesmo lugar. Fui até lá e carreguei a cadeira com ela em cima e arranjei um lugar bem na frente. Fiz o mesmo pelo Bobó. Todos ficaram rindo de me ver passar com eles sentados na cadeira. Já os dois, me agradeceram com aqueles olhares que nunca mais saem de nossa mente.
Eu tinha umas 30 opções de filmes para crianças e não sabia o que usar. Olhei para o nomes e escolhi “Happy Feet” (a história do pingüim sapateador).

Todos olhos vidrados na tela. Fui para o carro organizar a pipoca e o refri que era surpresa para eles. O filme já rodava por uns 20 minutos, e de repente as vozes das crianças falando...olhei para trás e vi que embora o gerador ainda estivesse funcionando a energia havia acabado. Corri lá e constatei que a extensão que usamos havia queimado. Sem problemas, eu tinha uma reserva. O filme voltou, voltei pra pipoca e junto com a Uduak terminei de organizar tudo. Enquanto fazíamos isso, ouvia as risadas da criançada e também dos adultos que estavam lá dentro...aquele som realizava minha alma, matava a fome que estava sentindo, fazia valer cada gota do suor que encharcava minha roupa.
Mais uns minutos de filme e de repente um silêncio total...o gerador parou e meu coração quase parou também. Pensei – acabou o combustível. O Emmanuel correu lá e o ligou novamente. Foi só um desarme, nada mais.
Entrei no galpão e parecia de fato um cinema, bem escuro, uma tela bem iluminada na frente e todos quietos, atentos e curtindo cada momento. As crianças nem me viram entrar ali com as pipocas. Fomos distribuindo das cadeiras do fundo para frente. Só perceberam quando já havíamos passado da metade do grupo, mas se comportaram e esperaram sua vez. Abri a caixinha da Vitória e do Bobó. Eles com aquelas mãozinhas de bebê pegaram, colocaram no colo e começaram a comer. Daí o Emman veio trazendo os refrigerantes. O que me maravilhou foi que a atenção foi bem dividida entre o filme e o lanche. De repente lá estavam todos comendo sua pipoquinha, bebendo refri e assistindo o filme.

Saí para preparar a última surpresa do dia. Entrei no carro e em 5 minutos estava vestido de palhaço. Quando o Emman me viu ele ria tanto que eu pensei “vai dar certo, as crianças vão amar”. Eu havia preparado uma flor que esguicha água, alguns malabarismos com bolas de tênis, brincadeiras com balões e algumas travessuras. Fui me esconder atrás do galpão para esperar o fim do filme e fazer minha entrada. Estava tudo tão escuro que eu não precisava me esforçar para ficar escondido. Acho que ainda faltavam uns 30 minutos de filme quando alguém veio até mim e falou: “a Janet (esposa do Evans) disse que vamos ter que parar o filme agora porque está ficando muito tarde e vai ser difícil para ela organizar todos para ir para cama tão tarde”. Eu não acreditei naquilo! Ainda pedi “mas não dá para esperar meia hora?” e disseram que não, que já estava muito tarde. Eu então propus, “olha, já que vamos parar o filme agora, diga a ela que quero só 15 minutos para fazer umas brincadeiras com as crianças” e eles concordaram. Pedi ao nosso time que desligasse o filme e acendessem as luzes do salão. Fui lá para dentro. Agora, sem a luz do filme não se via um palmo à frente. Então fiquei aguardando acenderem as luzes para começar a palhaçada. Mas a luz não acendia. O Emman foi e perguntou ao Evans se as lâmpadas não estavam na mesma rede, ele disse que sim, só que achava que estavam todos elas queimadas.

Quando o Emman me contou fui direto para o carro e em um minuto tinha trocado de roupas. As crianças nem me viram. Brincar de palhaço no escuro não dá. Tive que deixar para outra ocasião, para não estragar a surpresa e fazer valer o arranjo. E lá se foi um palhaço frustrado.

Quando estávamos saindo, a Janet veio se despedir e disse “que interessante como conseguiram fazer os pingüins falar e dançar”. E o Emmanuel já mais a par da tecnologia desvendou tudo: “isso é feito no computador”.  Ela olhou para mim “ah, que legal”. Essas realizações me fazem viajar.

De repente senti minha perna sendo abraçada, era a Esther que veio agradecer. Eu vou lhes falar, até hoje não achei nada como a Nigéria para testar um coração. Seja nos sustos nas estradas, nas tristezas da dura realidade ou nas alegrias de momentos como este. Dai a pouco apareceram aqueles olhinhos brilhantes da Victória no escuro. Ela chegou e se colocou entre minhas pernas, segurando minha calça e olhando para frente. Não vou tentar descrever os sentimentos que se passam em mim porque não conseguiria fazê-lo bem. Então vou deixar isso por conta de vocês.

No carro, retornando para a base, conversei com o Bassey - que foi reconciliado com a família e o levávamos de volta para sua casa - e com o Samuel, que levávamos de volta para o orfanato do Exército da Salvação, onde o mantemos e sustentamos. Ambos falavam pouco, pareciam que ainda estavam assimilando o que havia acontecido, mas uma coisa era inquestionável: eles gostaram pra caramba, porque tinha um sorriso no rostinho deles que não desaparecia nem com o escuro da estrada.

Leonardo Rocha | Eket, Nigeria
23/05/2012