Terça-feira, 16 de novembro de 2010.


Começamos o dia cedo, trabalhando nos diários da viagem; seguimos para o CRARN, pois hoje seria o dia em que o Leo (fotógrafo) e o Carlos iriam cadastrar cada criança, para podermos ter a história de cada uma delas bem como suas medidas, para futuras doações. Enquanto aguardávamos, no orfanato, que os meninos se organizassem para começar a catalogação de dados, ficamos um tempo brincando com as crianças e, como sempre, foi especial – e tão doloroso na hora da partida. O Leo aproveitou para agilizar os últimos preparativos para o passeio até a praia com as crianças, o que aconteceria na quarta-feira. Delegou algumas coisas para o Vitor e Godwin (ambos voluntários do CRARN).

Eu e o Leo seguimos para Oron, onde iríamos nos reunir com o Jackson para tratar de questões logísticas e administrativas da casa, da preparação do evento de inauguração dela na sexta-feira, e da reunião com os pastores de ORON (aqueles vinte pastores com os quais estivemos na última viagem, todos eles acreditavam que crianças poderiam ser bruxas. Nessa última reunião, quatro deles mudaram seu posicionamento).

Nossa chegada à casa foi seguida de surpresas. Ao chegarmos à vila simples, fomos recebidos pelo locador e sua família, pelo Jackson e por sua secretária, a Uduaki (foi preciso encontrar alguém com o perfil dela para ajudar na tradução dos dialetos, que são diversos na região; e ela os conhece muito bem). Eles nos ofereceram um banquete com direito a champagne e peixes, providenciados pelo locador. Ficamos constrangidos com tanto amor.

Nessa oportunidade, o Jackson apresentou ao Leo os relatórios de casos de crianças que ele tem acompanhado na cidade – havia sido feito o encaminhamento de algumas delas para o orfanato. Um fato que nos impressionou foi que os relatórios estavam todos digitados, com uma cópia e com foto; o Leo perguntou ao Jackson como ele tem feito isso, e ele informou que anota tudo à mão, leva a uma lojinha para que uma moça digite para ele, e depois providencia a foto da criança.

Um dos casos relatados pelo Jackson e que muito nos chamou a atenção foi o de uma criança que estava sendo violentada pelos pais; até a polícia precisou se envolver nesse caso. O Jackson estava acompanhando de perto a família, e em sua segunda visita a criança havia desaparecido de casa. Ele foi orientado pelo chief da vila a afastar-se do caso, para sua própria segurança, enquanto a policia continuaria a investigação.

Após a reunião na casa WN, seguimos para a casa do Chief, com quem o Leo esteve conversando sobre a criação da ONG e sua estruturação, bem como sobre os procedimentos necessários para que conseguíssemos o registro da casa no âmbito federal.

A catalogação das crianças acontecia ao mesmo tempo em que estávamos em Oron. Os meninos fizeram uma grande fila, e com a ajuda de uma voluntária do CRARN (a Cris) fomos anotando nome, sexo e idade das crianças. Foi marcado um grande X no chão, e o Carlão ficava preparando as crianças para que saíssem enquadradas nas fotos. A essa altura começou a chover torrencialmente. O Leo (fotógrafo) montou o tripé e foi tirando as fotos, enquanto a Bright (uma das adolescentes do orfanato) segurava o guarda-chuva para ele. Algumas crianças não tinham sapatos (e aqui eles só tiram fotos com sapatos), então, uma ia emprestando para a outra, a fim de que todas pudessem sair calçadas, nas fotos. Elas corriam para seus quartos para se vestirem melhor, e as que estavam sem roupas apareciam vestidas com tamanhos maiores.

Após o cadastramento das cento e sessenta crianças, por volta das quatro da tarde, os meninos foram almoçar (lanche que o Leo havia comprado mais cedo e deixara para eles). Nesse momento foi possível gastar um tempo com os voluntários, conversando sobre o orfanato e conhecendo um pouco mais da realidade local. Um dos voluntários – um senhor nigeriano que mora na vila do orfanato – ficou por horas conversando com o Carlão e fez afirmações categóricas, entre as quais uma que muito chamou a atenção: “todos aqui somos muito pobres e sem perspectiva, com exceção dos pastores, que são muito ricos pois se valem da ignorância da população”. Terminaram o dia no orfanato indo conhecer os alojamentos, e viram muita sujeira, desorganização e indisciplina das crianças.

Quarta-feira, 17 de novembro de 2010.


Chegou o dia tão esperado pelas crianças: o dia da praia. Seguimos para o orfanato por volta de 11:30 da manhã; o Leo havia contratado dois ônibus para esse momento, pois como ele havia prometido na última vinda, dessa vez não haveria crianças chorando por não poderem ir à praia – todas iriam conosco. Prevíamos que a condição dos ônibus não seria a melhor mas imaginávamos que seriam grandes. Fomos surpreendidos com dois micro-ônibus, e só um milagre faria todas aquelas 171 crianças caberem neles. Fomos também surpreendidos por Deus: os ônibus e mais duas caminhonetes nos auxiliaram a conduzir as crianças. Antes de embarcarmos fizemos um grande círculo com elas, no orfanato; explicamos como seria o passeio e a necessidade de obediência; o Leo explicou como seria a brincadeira na água, e informou que a água não poderia passar do joelho de nenhuma delas.

Quando terminamos as instruções e começamos a organizá-las nos ônibus, um dos voluntários do CRARN se aproximou do Leo e perguntou se não seria possível que as crianças não entrassem na água, pois recentemente uma das crianças morrera afogada em um riacho próximo ao orfanato (mostrando ao Leo, em seguida, o documento de liberação para o enterro daquela criança). Ainda tomando ar por causa da notícia repentina, o Leo explicou que seria impossível e sem sentido levar as crianças para a praia e impedi-las de entrar na água; e com a certeza do que dizia, acalmou o voluntário: “fique tranquilo, nada irá acontecer com nenhuma das nossas crianças”.


Chegamos à praia por volta de 1:00 da tarde. Lá encontramos o Moisés – o professor de surf das crianças – com as pranchas e todo vestido com a roupa de surf que o Jojó havia deixado. Criamos uma linha imaginária dentro da água; o Leo separou dentre os voluntários um para cada canto da praia, e liberamos as crianças para se divertirem. Os adolescentes levaram tambores e tocaram a valer, as meninas dançaram e brincaram com músicas de roda que elas nos ensinavam, os menores ficavam com receio do mar, e os alunos de surf aprendiam a manusear a prancha. O Jackson trouxe algumas bolas e os meninos – e até o nosso motorista – jogaram bastante. Havia um garotinho de uns dois anos de idade que o Leo viu quietinho com medo da água, sentadinho – parecia triste, mas estava era com medo. Aí, o Leo levou-o até a água e, de repente, ele se soltou e voltou correndo para a areia, tirou a roupa, ficou peladinho e voltou para o mar, feliz e confiante de que nada poderia acontecer. Após umas duas horas tivemos o lanche para as crianças e recomeçamos a organizá-las para retornarmos ao orfanato às cinco horas.


Mal saímos da praia e, enquanto ainda estávamos retornando, o Leo recebeu uma ligação do Gary pedindo para que entrássemos em contato com um humanista nigeriano chamado Leo Igwe, que iria participar de uma entrevista na televisão, em um programa muito famoso, falando sobre acusação de crianças poderem ser bruxas. Como o programa iria ao ar às sete da manhã, precisaríamos dormir em uma pensão nessa outra cidade onde o programa seria apresentado ao vivo. À noite, seguimos para Uyo na esperança de encontrar vaga em alguma pensão por lá. Durante a viagem estávamos sonolentos e só acordávamos quando o carro era parado por barreiras policiais, mas quando os policiais viam que éramos brancos nos mandavam ir embora rapidamente, assustados.

Prosseguimos viajando e cochilando, até que fomos despertados por uma situação bem engraçada mas também perigosa: o nosso motorista entrou na via errada e por alguns minutos tivemos que ficar na contra-mão em uma rodovia, pois havia um canteiro separando as estradas. Todos acordamos assustados; o Leo fotógrafo, primeiro a ver onde estávamos, ficou tão assustado que começou a falar em português com o motorista, perguntando baixinho: “você tem certeza de que nós estamos na via correta?” e ele, muito tranquilamente, respondeu em inglês: “What?”. Acordamos todos surpresos, vendo o farol dos carros na nossa frente, e só voltamos a relaxar quando descemos do carro a salvo, em Uyo, às nove da noite.


Ayla Ayres e Leo Santos
Akwa Ibom / Nigeria

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