Antes da partida para casa, uma partida de futebol
6 de março de 2010
Postado por Unknown
Olhando para bola eu vejo o sol
Está rolando agora, é uma partida de futebol
Samuel Rosa e Nando Reis
Está rolando agora, é uma partida de futebol
Samuel Rosa e Nando Reis
O Jojo cansou de nos ver sem comer direito e prometeu um domingo de culinária brasileira. Eu ia comer peixe, então. Fresco, pescado na hora! O almoço estava sendo muito esperado! O clima entre nossa equipe nigeriana era de despedida. Faltando dois dias para iniciar a longa viagem de volta ao Brasil, nossos heróis nativos já nem mais iam embora para suas casas. Ficávamos juntos o tempo todo e todos estavam trabalhando pela última cruzada, no dia seguinte, segunda-feira.
O que ninguém imaginava era aquela manhã indigesta na Liberty Gospel, estrutura cristã rica, ostentadora e promotora intelectual do infanticídio! Na hora do almoço, eu e o Leonardo estávamos muito esgotados. Aquele embate parecia ter sugado nossas energias. Nunca pensei na minha vida que um dia bateria minhas sandálias contra alguém para arrancar da sola dos meus pés o pó da brutalidade arrogante dos que desejavam nossa morte. Fomos amaldiçoados em nome de Jesus, com berros e enxotamentos. Em resposta, nunca gritei tão alto a promessa de jamais desistir de lutar!
Então eu estava calado, à mesa, esperando meu peixe. Percebi ao redor que todo mundo já sabia do confronto matinal. Telefonavam uns para os outros contando, orgulhosos. Riam entre si. E eu dava graças a Deus que tínhamos conseguido evitar andar com policiais por todos os dias anteriores. A escolta militar que agora era obrigatória, iria somente à Cruzada, no dia seguinte, quando pregaríamos em campo aberto pela segunda e última vez. A intenção das autoridades era evitar que os obreiros de Helen Ukpabio dessem as caras para estragar o evento. Nós, contudo, não estávamos nem aí prá isso. Nós queríamos era a multidão reunida e depois voltar para casa, para articular uma forma do Way for the Nations ficar prá sempre na Nigéria – promessa feita a amigos e inimigos.
Mas a multidão se antecipou, e se ofereceu para nós, multiplicada... Deus não cansa! E providenciou um auditório inesperado. Nada como um jogo de futebol...
Foi assim: O Víctor apareceu pedindo se o “Brasilians Missionaries team” poderia comparecer à final da liga regional que estava prestes a começar numa cidade vizinha. Ele alegou que os organizadores ficariam muito honrados com nossa presença, e sabedores dos acontecimentos todos dos últimos dias, e “qual era a nossa”, em troca da presença nos dariam o direito ao microfone a fim de falar aos milhares de torcedores reunidos no “estádio”.
“Já tivemos nossa final de campeonato” – eu pensei. “Vamos nos concentrar para amanhã.” – combinei com o grupo.
O Leo disse ao Vitinho que não iríamos. E ele passou a dar uns telefonemas aflitos, andando de um lado para o outro do refeitório. O jogo já estava por começar e ele tentava justificar nossa ausência, (e eu tentava esperar quietinho o peixe do Jojo que não ficava pronto nunca).
Então, o Victor desligou o celular e implorou se podíamos, ao menos, mandar uma representação... Uns dois ou três de nós...
- “Tá bom, tá bom, Victor. Mas primeiro vamos almoçar, meu irmão!”
Ainda tenso, ele voltou a telefonar para a organização do evento esportivo. Falava em Ibibio, o dialeto local... Nós não entendíamos nada. Ao desligar o telefone, ele exclamou satisfeito: “Ok, podem almoçar à vontade, eles esperam vocês chegarem lá para começar o jogo!”
- “O quê? Como assim? Só vão começar depois que chegarmos lá?!”
Fui à cozinha: “Jojo, cadê a porcaria do peixe?”
Com toda sua doce baianidade, meu amigo surfista promovido a cozinheiro respondeu: “Calma, meu rei... Ainda demora um pouco, mas vai ficar uma delícia!”
Delícia ia ser fazer uma viagem sem comer nada (de novo!) prá assistir não-sei-quem contra sei-lá-o-quê à mais de 40 graus à sombra. Sim! Eu, os Leonardos e Clayton decidimos ir!
- “Victor, você tem certeza que vamos poder falar umas palavras ao povo, né?”
- “A bola só rola depois que vocês falarem!”
Eita.
***
Chegamos.
O carro foi imediatamente cercado por um mundo de sorrisos de recepção!
Saímos. Abriu-se uma espécie de corredor de segurança. Uns estapeavam os outros para que não tocassem em nós. Não adiantava muito, na verdade. O corredor humano nos levava a algum lugar, mas era tanta gente que a gente não conseguia nem identificar para onde estávamos indo.
Apareceu então uma tenda, debaixo da qual estava nossa mesa, e nossas cadeiras, e nossas garrafas de água quente e nossa papelada da programação do evento. E nossa ficha caiu!
“Nossas boas-vindas aos presidentes da Mesa desse espetáculo: The Brasiliaaaaans Miiiiiiiissionarieess!” – anunciou ao microfone um narrador animado!
O campo verde-arenoso estava cercado por quase três mil pessoas, que eram impedidas de invadi-lo por um “gandula” maratonista que corria todo o retângulo batendo nas pernas dos torcedores com uma vara para que não ultrapassassem os limites mal-delimitados entre torcedores e jogadores, campo e arquibancada.
Um microfone apareceu na minha mão! Hã? Já era minha vez? Comecei a falar buscando uma identificação com o povo local:
“Eu sou brasileiro. Sou branco, mas não sou europeu e nem norte-americano. Nasci e cresci no país do futebol penta-campeão do mundo! Moro em Santos. O Santos de Pelé. O Santos de Robinho!”
Eram muitos aplausos. Emocionei-me como eles amam minha terra e nossos heróis, e entendi que tal encontro de alma entre nós não seria possível se não fôssemos brasileiros. Lembrei que a ONG inglesa tinha nos avisado meses atrás: “Não se metam na África, eles não ouvem brancos!” E agora eu estava ali sendo ouvido pela ex-colônia britânica. Sim. Eu não era branco. Eu era brasileiro! Brasileiro não é branco nem preto. Brasileiro é brasileiro!
À luz dessa percepção, empolguei-me, então. Entrei logo no assunto, falei de Jesus, acusei a bruxificação infantil, disse que no Brasil temos muitas crianças negras, pobres e abandonadas, mas nenhuma delas foi expulsa de casa em nome de Jesus! Pedi um pacto urgente entre todos de se envolver ativamente na defesa dos pequeninos do Senhor... E então, o Leo cochichou ao meu ouvido: ”Marcelo, ainda não é hora de falar. Entrega esse microfone. Teremos um tempo depois. Agora é só para você se apresentar, mano!”
Controlei-me.
Fomos levados até o campo para cumprimentar jogadores, juízes, equipes técnicas e sei lá quem mais. Eles estavam se preparando para uma batalha “mortal” entre as cidades. O time da casa vestia o uniforme todo azul do CHELSEA (3 Stars FC of Uquo), conhecida equipe inglesa. O time visitante estava de branco e trouxe poucos torcedores. Algumas centenas. Mas não tinha no rosto nenhuma expressão de frouxidão por jogar na “casa” do adversário. Desejamos boa sorte a todos: "God bless you, guys!”
Sentamos. Então, o microfone anunciou o ponta-pé inicial, a tradição onde um ilustre convidado vai até o meio de campo dar o primeiro chute: Leeeeeoooooouuuuuu Santos, do Braziiiiillllll!!! Eu ria muito. Lembrei que já tinha ouvido isso antes!
E lá foi o Leo tentar fazer o gol que Pelé não fez. Foi quase. Um zagueiro virou-se e recebeu a bolada nas costas! Uuuuhhhh! “Quase!”. O Leo saiu aplaudido e acenando a todos.
Sorrindo, discursou lindo, falando sério! Questionou como um país teria futuro se ignorava o destino de suas crianças! Disse que só havia quem as bruxificassem, porque também havia quem deixasse! “Vocês estão acreditando que se pode fazer em nome de Jesus o que Jesus nunca faria!” Contou tudo que tínhamos visto naqueles dias, e que agora que íamos embora, precisávamos ter certeza que eles não deixariam ninguém acusar seus pequeninos dos males dos adultos. Pediu um BASTA! Alertou que eles desprezassem as vozes proféticas de igrejas como aquela que estava erguida próximo ao Campo (Sim, uma congregação da Liberty Gospel Church era vizinha “muro a muro” de onde estávamos).
Todos aplaudiram muito e o narrador (Sim, o jogo é narrado “ao vivo e a cores”) assegurou ao Leonardo que todos estariam comprometidos com acabar com essa desgraça!
E eu pensava: “Meu Deus, há uns minutos atrás fomos tratados como cães no ambiente religioso e agora estamos aqui, no templo da secularidade, presenteados por essa oportunidade de nigerização da nossa alma para além do que um dia podíamos ter concebido".
Amávamos aquela gente e eu não queria mais ir embora. Queria só ficar ali, à mercê da Graça de Deus em meio a essa experiência apostólica! Nossa paz, enfim, tinha voltado a pousar sobre nós! Um gol de Deus!
Mas no jogo não houve gol algum. Nós torcíamos pelo time da casa. Ele representava a região com a qual estivemos envolvidos todos esses dias. O chief, ancião-feiticeiro que acompanhou a delegação visitante, se aproximou da mesa, e percebendo nosso “tendencionismo”, rogou aos berros que caísse sobre nós todas as maldições de seus ancestrais, do céu, da terra e do inferno, movendo seu cajado para o alto e para baixo, e finalmente, empunhando-o a frente de nossos rostos!
Eh! De fato, eles gostam mesmo de futebol. A tensão era tanta que eu senti que Brasil e Argentina estavam em campo. Conheço bem a religião que é o futebol. Frequento a Vila Belmiro desde muito menino, e como corintiano, já estou acostumado a ser xingado. A cara de monstro raivoso do velhinho não nos assustou em nada. Rimos escondido: O time da casa ia ganhar, pô!
Pênaltis. Decisão por Pênaltis. E o “CHELSEA” conseguiu a proeza de não marcar um único gol apesar do campo completamente invadido por sua própria torcida! O time do chief, por outro lado, acertou os cinco chutes. Sim! Perdemos de 5 x 0! Em casa! Caramba! Foi um desastre! (O jogo poderia ter acabado com três tentos concluídos, mas os meninos queriam massacrar mesmo o pobre Chelsea de Eket!) Fim! O Ntakinyang FC é campeão! Quase deu briga! O gandula da varinha disciplinadora apanhou o suficiente e foi atropelado por aqueles em quem ele tinha batido! Em catarse, a multidão veio correndo como cavalos de batalhas em direção a nossa mesa. Eu não fazia a menor idéia do que eles iriam fazer, mas pequei o troféu tão almejado e o abracei com força contra o peito, mantendo-o assim até que os dirigentes organizassem a cerimônia de novo! Todos olhavam para o troféu e eu me sentia o “Frodo” guardando o Anel precioso!
O Leonardo e o Clayton presentearam o melhor juiz do campeonato, bem como o melhor goleiro, o artilheiro, o jogador mais disciplinado, todo mundo que era algum “melhor-alguma-coisa”. Eram prêmios em dinheiro dentro de envelopes.
Finalmente, chegou a hora mais esperada, e o capitão campeão veio receber a taça. Ele a tomou tão rápido da minha mão, que as câmeras de TV mandaram voltar tudo. Então, ficamos ali, feito estátuas de sorriso duro – eu, ele e o troféu – naquele aperto de mão que nunca termina!
Terminou.
A bola do jogo foi trazida à mesa para ser autografada. Na minha vez, não escrevi meu nome. Eu não sou eu. Eu sou minha Campanha, sou minha Guerra, sou minha Causa: SAY NO TO WITCHCRAFT! – Essa foi minha assinatura!
O ancião da cidade vencedora voltou até a mesa para propor a paz, e nos cumprimentou com reverência. “Congratulations! You are the champion, chief!!!” – falamos ao abraçá-lo!
Sim, o futebol é uma religião na qual existe a possibilidade de paz no final!
***
Fomos embora. Saindo à rua, um menino presente ao jogo me procurou: “Sir, você conhece Gary Foxcroft?”
- “Sim, querido. Eu o conheço, o Garry, inglês da Stepping Stones Nigeria!”
- E ele disse: “Sim! Ele é meu amigo! Ele me salvou! Quando você o encontrar, diga que estou bem! Eu estou muito bem!”
***
Na pousada... Finalmente, o peixe.
Mas com a alma cheia de Esperança e Graça, eu já estava alimentado.
Estava tudo bem! “Que coisa linda é uma partida de futebol!”
Marcelo Quintela
Caminho Nações
Este artigo foi postado por Blog do Caminho em 6 de março de 2010 às 17:07 e está arquivado em diário,missão,nigéria. Siga quaisquer respostas a este artigo através do RSS 2.0 feed. Você pode também deixar seu comentário aqui.
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